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BDSM é Legal? O que a Justiça diz sobre o tema?

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    Mestre SM
  • 4 de jun.
  • 9 min de leitura

Por Antônio Carlos Ribeiro Júnior (Advogado, especialista em direito constitucional, mestre em políticas sociais e cidadania, anarquista)




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As práticas BDSM suscitam diversas reflexões no âmbito jurídico. Para uma forte corrente jusfilosófica, o Direito é fato, valor e norma. E é pelo viés do valor que a moral se espraia. A moral dominante, conservadora, posiciona as práticas BDSM para a periferia do sistema de justiça.

A lógica de exclusão das práticas BDSM do âmbito da juridicidade é a chave para se compreender criticamente a relação entre o direito e as práticas BDSM, em especial no contexto brasileiro.

Não falaremos em “legalidade”, pois entendemos que não cabe apenas a tutela legal das práticas BDSM. O termo “juridicidade” abrange a tutela jurídica como um todo, abarcando não apenas o reconhecimento pela norma, mas também na jurisprudência e na cultura judiciária.


Assim, há dois eixos principais que podem servir para iniciar o debate sobre o BDSM e o direito: a criminalização das práticas BDSM e a contratualização das práticas BDSM.

No primeiro eixo, o debate se debruça especialmente em relação ao consentimento e à proteção dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal. Para termos melhor entendimento sobre a abordagem jurídica do tema, é necessário delimitar o conceito de bem jurídico e a função do direito penal na sua proteção.


O bem jurídico é um valor essencial para a convivência em sociedade, cuja preservação justifica intervenções do direito penal. Exemplos clássicos incluem a vida, a liberdade, a dignidade, o patrimônio e a incolumidade física. Este último diz respeito à proteção da integridade corporal e da saúde, sendo tutelado por tipos penais como as lesões corporais (art. 129 do Código Penal) e a tentativa de homicídio (art. 121 c/c art. 14, inciso II, do Código Penal).

Contudo, essa proteção não pode se transformar em uma imposição absoluta que retire do sujeito o direito de dispor desses bens de maneira consciente e consensual, especialmente em contextos onde não há lesão significativa aos interesses coletivos e/ou individuais. Essa questão é especialmente sensível no caso das práticas BDSM, que envolvem um exercício intencional e consensual da autonomia individual.

A incolumidade física, enquanto bem jurídico tutelado, refere-se à integridade do corpo e da saúde. No entanto, a proteção penal desse bem não significa que o titular esteja completamente impedido de dispor dele em situações que não comprometam sua dignidade ou os limites razoáveis impostos pelo ordenamento jurídico. A liberdade individual, como expressão da autonomia, permite que as pessoas assumam riscos controlados em atividades que envolvam impactos físicos, como esportes radicais, artes marciais e, de maneira análoga, práticas BDSM.

As práticas BDSM, por envolverem atos que são vulgarmente considerados violentos ou degradantes sob a ótica conservadora (que domina o âmbito jurídico brasileiro), confrontam diretamente o conceito de incolumidade física. Entretanto, diferentemente de atos criminosos, essas práticas baseiam-se no consentimento mútuo, em regras claras e no respeito à segurança dos envolvidos. Assim, surge o desafio jurídico de distinguir essas práticas de condutas que efetivamente violam bens jurídicos.

O consentimento é o eixo central para a legitimidade de muitas condutas que, sem ele, poderiam ser consideradas ilícitas.

O direito penal brasileiro considera que o consentimento pode ser um elemento excludente de ilicitude em algumas situações, desde que não contrarie o ordenamento jurídico. Nos esportes de contato, como o boxe ou o MMA, é amplamente reconhecido que os praticantes aceitam os riscos inerentes à atividade. Embora as lesões físicas ocorram frequentemente nesses esportes, a existência de regras, regulamentação e consentimento explícito afasta a ilicitude dessas condutas.

O direito brasileiro não admite o consentimento em situações que coloquem em risco a vida ou causem lesões graves de forma deliberada. Portanto, atos BDSM que ultrapassem esses limites poderiam ser considerados ilícitos, mesmo com o consentimento das partes. Contudo, práticas que gerem apenas marcas superficiais ou desconfortos temporários, dentro de um contexto consensual, geralmente não caracterizam crime.

No caso das práticas BDSM, o consentimento também é um elemento crucial. O conceito de SSC ("Sanidade, Segurança e Consensualidade") é amplamente aceito pela comunidade praticante e estabelece que as práticas devem ser realizadas com saúde mental (sanidade), segurança (redução de riscos) e consentimento livre, prévio e informado. Assim como nos esportes, o consentimento esclarecido legitima os atos e evita a intervenção estatal-penal, desde que não excedam limites razoáveis, como o risco de morte ou lesões graves.

Aqui, é importante abrir um parênteses sobre a importância da utilização dos instrumentos de contrato para resguardar as partes quanto aos termos e extensão da relação estabelecida (o que antecipa um pouco do segundo eixo desta abordagem jurídica das práticas BDSM).

De volta ao aspecto criminal, a comparação entre as práticas BDSM e os esportes de contato ilustra a necessidade de uma análise contextual para cada caso concreto. Enquanto os esportes têm regulamentação formal, as práticas BDSM operam em um campo mais informal, porém igualmente organizado em termos de consentimento e segurança. Para evitar criminalizações indevidas, é essencial que abordagens jurídicas considerem o contexto, o consentimento e a ausência de dolo ou lesão grave aos envolvidos.

Argumentar que o titular da incolumidade física não pode dispor dela em práticas consensuais e conscientes implicaria restringir a liberdade individual de maneira desproporcional. Não há justificativa para que o direito penal intervenha em condutas onde não há lesão relevante ao bem jurídico ou risco de danos irreparáveis. No caso das práticas BDSM, os envolvidos exercem sua autonomia de forma responsável, o que reforça o caráter legítimo da disposição parcial e temporária da incolumidade física.

A distinção entre disposição voluntária e violação forçada do bem jurídico é fundamental. A tutela penal contra lesões corporais (art. 129 do Código Penal) visa proteger indivíduos contra agressões não consentidas. No entanto, quando há consentimento livre, prévio e informado, não há violação da incolumidade física no sentido jurídico, pois o ato é realizado dentro dos limites da autonomia individual e sem intenção de causar danos permanentes ou irreparáveis.

Um paralelo pertinente é o das intervenções médicas estéticas, como cirurgias plásticas ou tatuagens. Essas práticas envolvem modificações intencionais no corpo, mas são amplamente aceitas porque o titular da incolumidade física consentiu com os procedimentos. Assim, a autonomia do indivíduo sobre seu próprio corpo é respeitada, e o direito penal não intervém, desde que não sejam ultrapassados os limites éticos e legais.

Outra questão a ser levantada é sobre quem são estes praticantes de BDSM. É notório que a justiça se posiciona de formas diversas, a depender de quem é seu “público”: um homem branco, cis-hétero e rico flagrado na prática de um crime não terá o mesmo tratamento pelas agências penais conferido a uma mulher preta, não-heteronormativa e pobre.

Assim, o conservadorismo, que pode conduzir à criminalização das práticas BDSM, pode se servir de outros marcadores sociais, como a raça, o gênero e a classe para reforçar a rotulação dos praticantes de BDSM como criminosos, libertinos, pervertidos, anormais, doentes ou degenerados.

Neste caso, é importante salientar que enquanto “esporte de contato”, a capoeira foi criminalizada por muitos e muitos anos - enquanto outras práticas de “artes marciais” não sofreram a mesma perseguição. Percebe-se, portanto, que havia a criminalização não da capoeira em si, mas das pessoas que praticavam a capoeira. De igual sorte, determinados sujeitos quando praticantes de BDSM serão mais facilmente rotulados como criminosos.

Logo, o marco jurídico das práticas BDSM no Brasil repousa na distinção entre consentimento válido e proteção dos bens jurídicos, especialmente a incolumidade física - sem exclusão da possibilidade de criminalização de determinados sujeitos por força de outras categorias de análise, como raça, gênero e classe. Assim como em esportes de contato, o respeito ao consentimento e a adesão a regras de segurança podem legitimar práticas que, à primeira vista, poderiam parecer incompatíveis com o ordenamento jurídico. Os limites são claros: a vida e a integridade física não podem ser objeto de consentimento irrestrito. Essa abordagem equilibra a proteção penal e o respeito às liberdades individuais, promovendo um direito penal mais humano e contextualizado.

Negar ao indivíduo o direito de dispor parcialmente de sua incolumidade física em um contexto consensual deveria ser considerado incoerente com a lógica do direito penal contemporâneo, que busca equilibrar proteção e liberdade. Se práticas esportivas, estéticas e recreativas que envolvem riscos são aceitas, não há motivo para que as práticas BDSM, que são realizadas com os mesmos cuidados e consentimento, sejam tratadas de forma diferente.

Por outro lado, é evidente que o consentimento não é algo absoluto. O direito penal estabelece limites claros para proteger contra abusos. Atos que resultem em lesões graves, risco de morte ou que violem a dignidade humana ultrapassam o alcance do consentimento válido e devem ser punidos. Contudo, práticas que se restrinjam a marcas superficiais, desconforto temporário ou prazer consensual não podem ser consideradas ilícitas, pois não afrontam os interesses fundamentais protegidos pela norma penal.

Conclui-se que a proteção do direito penal ao bem jurídico tutelado, como a incolumidade física, não deve ser utilizada para limitar indevidamente a liberdade dos indivíduos de dispor de seus corpos em contextos consensuais. O respeito à autonomia individual é uma marca do Estado de Direito e deve prevalecer sempre que o exercício dessa liberdade não cause lesão significativa a interesses coletivos ou individuais. Assim, as práticas BDSM consensuais devem ser compreendidas como uma expressão legítima da autodeterminação, dentro dos limites estabelecidos pela ética e pelo ordenamento jurídico.

Importante, agora, passar ao outro eixo deste debate: a contratualização das relações no âmbito das práticas BDSM.

A contratualização de relações humanas é uma prática que tem ganhado destaque em diferentes áreas do direito, em especial no Direito de Família, como forma de proporcionar segurança jurídica e preservar a autonomia das partes envolvidas. No âmbito das práticas BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), essa tendência encontra relevância especial, pois envolveriam interações que, à primeira vista, podem gerar questionamentos jurídicos quanto ao consentimento e à integridade física ou moral dos participantes. Nesse contexto, a formalização de acordos, frequentemente chamada de "contratos BDSM", emerge como um mecanismo de proteção e clareza para todas as partes.


No direito brasileiro, a contratualização de relações pessoais não é um fenômeno inédito. Exemplos incluem o contrato de namoro qualificado, em que os parceiros formalizam que sua relação não possui caráter de união estável, evitando assim litígios patrimoniais futuros. Outros exemplos incluem pactos antenupciais, que regulamentam o regime de bens no casamento, e contratos de convivência, que organizam aspectos da vida em comum em uniões estáveis.

Arriscaria afirmar que todas as relações humanas afetivas se estabelecem de forma contratual. São estabelecidas as partes, o objeto, eventuais limites, direitos, obrigações e, até mesmo, as consequências no caso de eventual descumprimento destas normas. É claro que nem sempre existirá o instrumento de contrato, ou mesmo um contrato oral. O contrato pode ser tácito, pode encontrar-se no campo do subentendido. Mas isso não o torna menos contrato. A ausência do instrumento de contrato apenas não traz tanta segurança para as partes contratantes.

Esses instrumentos refletem a aplicação do princípio da autonomia privada, permitindo que as partes organizem suas relações de acordo com suas próprias vontades, desde que não contrariem normas de ordem pública ou os direitos fundamentais. No BDSM, a formalização de contratos segue lógica semelhante, adaptando-se às especificidades das práticas envolvidas.

O escopo principal da contratualização das práticas BDSM visa principalmente a segurança jurídica das partes envolvidas, entre si e perante terceiros.

A segurança jurídica é um princípio fundamental do direito que visa proporcionar previsibilidade e confiança nas relações jurídicas. No âmbito do BDSM, a contratualização permite que as partes envolvidas delimitem previamente os limites das práticas, os papéis a serem desempenhados, os riscos aceitos e as formas de comunicação, como o uso de "palavras de segurança" (safe words). Embora tais contratos não tenham validade jurídica absoluta para eximir a responsabilidade penal em caso de práticas que ultrapassem os limites da legalidade, eles são instrumentos valiosos para demonstrar a intenção consensual e esclarecida das partes, podendo ser utilizados como meio de prova em eventuais disputas.

Ademais, é importante salientar que também existe uma dimensão simbólica da existência do instrumento de contrato - que pode compor o próprio cenário da prática BDSM. Não se busca, portanto, reduzir o afeto e o desejo a uma relação contratual.

Os contratos no âmbito das práticas BDSM, embora não necessariamente vinculantes no sentido estrito, têm uma função importante de registro das intenções e dos limites das partes. Eles geralmente incluem cláusulas que especificam:

  1. Os papéis a serem desempenhados (dominante, submisso, switch, etc.).

  2. Limites negociados, como práticas aceitáveis e inaceitáveis.

  3. Palavras de segurança e mecanismos para interrupção imediata de atividades.

  4. Duração do contrato, com possibilidade de revisão periódica.

  5. Obrigações de cuidado e respeito mútuos.


Além disso, podem prever cláusulas que regulamentam a confidencialidade das informações compartilhadas e a proibição de práticas não acordadas, reforçando a proteção individual dos envolvidos.

Cumpre salientar que esses contratos não apenas visam proteger as partes juridicamente, mas também promovem a reflexão ética e a responsabilidade nas interações. Eles incentivam o diálogo aberto, a comunicação eficaz e, sobretudo, a conscientização sobre os riscos envolvidos, reduzindo a probabilidade de mal-entendidos ou abusos. O caráter consensual e negociado dessas relações contrasta com interações onde há coerção ou violência, delimitando claramente o que é lícito e aceitável.

Assim como os contratos de namoro delimitam os limites de uma relação afetiva para prevenir litígios futuros, os contratos BDSM buscam evitar conflitos decorrentes de percepções divergentes sobre as práticas realizadas. Ambos refletem uma tendência contemporânea de regulamentar relações pessoais para assegurar maior previsibilidade e proteção aos envolvidos, reconhecendo a pluralidade das relações humanas.

A contratualização das relações no BDSM ilustra como o direito pode ser um instrumento de proteção e organização das interações humanas, especialmente em contextos onde os limites entre o aceitável e o questionável podem parecer tênues. Ao mesmo tempo, esses contratos representam um avanço na promoção do diálogo, da transparência e também da responsabilidade, valores essenciais para qualquer relação saudável.


Em última análise, a contratualização no BDSM reflete a busca por equilíbrio entre autonomia e proteção, assim demonstrando que o respeito mútuo e o consenso são pilares fundamentais para a legitimação dessas práticas no campo jurídico e social. Essa abordagem contribui para a consolidação de um direito mais inclusivo e atento à diversidade das relações humanas, haja vista que a função do direito é tutelar o ser humano e as relações humanas, e não limitar seus afetos ou normatizar seus desejos.

 
 
 

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